São quase nove da noite quando um ator sussurra para o público “Qual a diferença entre vocês e eles?”, apontando com a lanterna a um bando de nus surtando na Casa da Frontaria Azulejada. E é lá, após duas horas com tantos personagens alienados e anônimos da peça ‘Projeto Bispo’, que se percebe que eles são tão humanos quanto eu, você e o artista plástico Arthur Bispo do Rosário.
As situações encenadas por cada um dos dez artistas de O Coletivo retratam partes da genialidade e loucura do falecido Arthur. Genial, pois ele concebeu mais de 900 objetos de arte contemporânea. Louco, porque o acervo foi criado com retalhos e peças descartáveis que achava no antigo Hospital Nacional dos Alienados, no Rio, onde viveu por 50 anos.
O ex-marinheiro e ex-pugilista sergipano perambulava pelas ruas antes de ser internado. É o mesmo caso da personagem conterrânea no teatro, interpretada por Malvina Costa. Hoje e na próxima segunda-feira, na Praça Mauá, às 20 horas, lá estará ela com um alto-falante chamando a todos para o início da sessão.
Dramas de quem vive na rua
Na primeira parte da obra, o público anda lado a lado com ela e outros moradores em situação de rua que surgem em cena. Palavrões e insultos são constantes e improvisados entre eles, mas justamente essa marginalidade faz os papéis serem críveis, humanos.
Destaque para o encontro dos personagens de Rony Magno e Junior Brassalotti na escadaria da Prefeitura. Enquanto o primeiro veste um similar do Manto da Apresentação (principal peça bordada por Bispo) se nomeando Filho do Pai, o outro faz o papel de um Deus irônico, criticando as exclusões sociais geradas por cor, classe econômica e orientação sexual.
Por vezes, algumas situações até geram risos na plateia. Como quando Wendell Medeiros protagoniza o caso de um indigente que dorme na marquise de uma agência bancária, responsabilizando-a pelo seu fracasso financeiro. E não é que essa cena surgiu quando uma mulher em situação de rua contou esse fato para o elenco?
Aliás, os momentos mais fortes estão nos dramas femininos. Seja com a cena de estupro de Juliana Sucila e Rafael de Souza, ou a revolta de uma prostituta, rejeitada pelos clientes por ser travesti, interpretada por Renata Carvalho.
Cresce a insanidade
No entanto, a insanidade dos personagens cresce dentro do hospital psiquiátrico ambientado na Casa da Frontaria Azulejada. Lá, as falas realmente perdem força para as ações representadas pelo elenco.
A iluminação apenas por lanternas e a trilha sonora de rock até músicas românticas colaboram nas esquetes, apresentando as técnicas de internação, medicação e choques elétricos nos pacientes, tão comum em antigos hospícios do Brasil.
Todos os espaços da casa se tornam em cenário para a loucura, que também corresponde as vontades de Bispo. Por exemplo, quando os personagens de Cícero Santos e Lucas Oliveira brigam sobre cores e Vanúzia Moreira sonha ter uma faixa e uma coroa. É que a cor predileta de Arthur era o azul, e seu maior desejo era casar com Ieda Maria Vargas, a Miss Universo de 1963.
Enfim, sob a direção de Kadu Veríssimo, é nítido o entrosamento de O Coletivo em mostrar o universo marginalizado de um artista plástico ainda não tão conhecido pelo grande público. O que torna o ‘Projeto Bispo’ em um teatro de forte estética e crítica social, e, nós, espectadores, mais humanos.
*Texto publicado originalmente no jornal A Tribuna em 3/dez/13
Fotos de Patrícia Garoni e Rodrigo MMorales