Entrevista: Murilo Netto aborda o ‘coração’ da Secult de Santos

Claro que aceito caronas. E embarquei na viagem dele em maio. Após entrelaçar os dedos ao debater políticas públicas com atores e diretores teatrais na Câmara, rodopiava o botão do rádio entre sambas antigos e orquestras antes de assumir o volante para cumprimentar fotógrafos e artistas plásticos em duas exposições lançadas naquela mesma noite. “Pena que saímos tarde da audiência, queria pelo menos dar uma passada num cineclube”, lamentou Murilo Netto abrindo a porta do carro em frente ao meu prédio.

10Não à toa que as mãos desse jornalista pós-graduado em marketing político vivem em sintonia com as diferentes artes. Desde janeiro, elas guiam o ‘coração’ da secretaria da Cultura de Santos. Como chefe do Departamento de Formação e Pesquisa Cultural, Murilo precisa acompanhar todos os cursos – da Fábrica Cultural à Escola de Bailado, da Escola Livre de Dança à Escola de Artes Cênicas, que alcançam mais de 3,5 mil pessoas. Entre outras funções, está à frente do CAIS Vila Mathias e dos Portos de Cultura, das seis bibliotecas municipais, da gibiteca, da hemeroteca, além dos corpos estáveis, como a Orquestra Sinfônica, do Coral Municipal e do Quarteto Martins Fontes.

Aos 30 anos, o santista se prepara e trabalha há tempos na gestão pública de departamentos de uma secretaria que tem a sua mesma idade. Enquanto assessor parlamentar de Paulo Alexandre Barbosa, já articulava e o representava em apoio ao festivais artísticos de Santos. Quando o deputado assumiu a Prefeitura em início de 2013, foi a vez de Murilo colocar as artes plásticas e visuais em evidência como coordenador dos museus e galerias municipais. Em entrevista exclusiva ao blog, o gestor partilha o panorama, as conquistas e os desafios de seu departamento.

Antes de assumir o Deforpec, você já esteve a frente dos museus e galerias da Cidade entre 2013 e 2014. Foram milhares de visitantes e dezenas de exposições. Como você avalia esta experiência e o quanto ela modificou seu olhar sobre as artes visuais e plásticas?

Minha passagem pela Coordenadoria de Museus e Galerias foi uma experiência inesquecível. No período, pude estabelecer conexões com artistas e com os representantes das instituições museológicas. Viver tudo isso me fez valorizar ainda mais o que foi e o que está sendo produzido aqui em terras caiçaras. Procurei romper uma barreira invisível, que ainda existe para muitos artistas, que parece distanciar a relação entre artistas, que se fecham em seus ateliês, e o poder público, que tem por obrigação fomentar a cultura.

02Meu objetivo principal foi incentivar e despertar o interesse dos artistas em voltar a ocupar os espaços públicos e as galerias de arte. As visitas e a imersão nesse universo rendeu muitos frutos. Exposições como a dos coletivos “Garage” e “Ateliê 44”, dos artistas urbanos na mostra “A Galeria é Nossa!” e a que produzimos em homenagem ao artista Luiz Hamem foram especialmente importantes, pois levaram centenas de pessoas ao Centro de Cultura Patrícia Galvão, que até então não era o mesmo desde a paralisação da Bienal de Santos.

Todas as mostras representaram pra mim a certeza de que a cidade permanece ativa no modo de pensar e agir nesse segmento. Pra mim, mais importante que saber conceituar a arte como contemporânea, é poder refletir, produzir e pensar de forma contemporânea a sociedade e a arte. A maioria dos artistas que eu convivi projeta de dentro de si essa lucidez, que é naturalmente sentida quando reproduzida na sua produção artística.

04Os museus são um capítulo à parte. Também procurei ouvir as demandas desse segmento é trabalhar para unir a rede municipal de instituições com a criação de uma comissão municipal de museus, que agora precisa ser ativada. Por tudo isso, somado aos intercâmbios culturais intermunicipais e internacionais, avalio como positiva a minha passagem pela Comug.

Na época, o departamento chegou a abrir a Galeria Braz Cubas para ocupação de grafiteiros da Cidade, como também entre os museus, elaborou o projeto Trem Cultural na Casa do Trem Bélico. Pode descrever mais sobre a idealização e a repercussão destas iniciativas?

06A exposição “A Galeria é Nossa!” foi um grande sucesso. Idealizada em conjunto com o artista Erico Bomfim, convidamos 6 grafiteiros para produzir livremente no ambiente até então formal da Galeria Brás Cubas. Desde o início, minha ideia era vender ao público uma mostra que seduzia pela transgressão, mas que surpreendia pela qualidade artística. Eliminamos os pregos e as molduras, oferecemos os painéis brancos para serem explorados e promovemos uma abertura com os demais elementos do hip hop, a música e a dança. A mostra foi muito elogiada e chegou a servir de cenário para ensaios de moda.

Na Casa do Trem Bélico, desde o início da gestão, em tornar mais conhecido esse que é um dos nossos principais patrimônios históricos edificados do centro da cidade. No primeiro ano, lançamos em parceria com o Instituto Maramar o projeto MarCafé. Eram debates sobre sustentabilidade, meio-ambiente e responsabilidade social. No final de cada encontro quinzenal, músicos locais se apresentavam e podiam apreciar quitutes preparados com ingredientes nativos da região. No segundo ano, iniciamos o Trem Cultural, que abria as portas do museu para apresentações culturais gratuitas nos finais de semana. Ambos levaram centenas de pessoas a conhecer o espaço.

Atualmente você coordena o Deforpec, responsável desde os corpos estáveis, Orquestra, até os cursos livres gratuitos oferecidos à população. Ainda sobre estes cursos, houve um aumento de vagas e espaços para atividades este ano. Pode detalhar como se deu esta ampliação? Ela acarretou em mais investimentos financeiros também?

Desde janeiro, após convite do prefeito, assumi o Departamento de Formação e Pesquisa Cultural, com a missão de manter a mesma filosofia implementada desde o início do meu trabalho na Secult, ou seja, ouvir as demandas da cidade e atende-las por meio da oferta de serviços de fomento à Cultura. Aumentamos as vagas esse ano (3 mil) em aproximadamente 20% comparando com o ano anterior. Mesmo com um aumento, reduzimos o custo mensal em cerca de 25%, com base nos valores gastos nos últimos meses do ano anterior.

02Para alcançar isso, convidamos professores estatutários, que estavam atuando em outras áreas da secretaria, a voltar a ministrar aulas; reorganizamos o uso dos nossos espaço e ampliamos a oferta e a variedade de cursos nos Portos de Cultura na Zona Noroeste e no Morro do São Bento. Além disso, fizemos uma mudança no programa Fábrica Cultural. Antes, alguns cursos mantinham uma proposta de ensino que podiam durar até 7 anos, o que fugia um pouco da proposta de democratizar o acesso à Cultura e oferecer o despertar artístico para um grande número de pessoas.

Essa pequena alteração acabou com o efeito negativo de manter classes de níveis muito avançados que eram reservadas a apenas dois ou três alunos. O programa também foi modificado no ingresso de crianças de 6, 7 e 8 anos. Nessa idade, elas podem se inscrever no curso de artes integradas. A partir dos 9 anos, podem optar por um outro curso específico, como violão, violino ou piano. Há algumas exceções, como no caso dos cursos de dança.

Outra matéria que passou a ser obrigatória para os alunos dos cursos de música é a de Teoria e Percepção Musical, que também abriu vagas para profissionais. Foram pequenos ajustes, que não mudaram a essência do programa Fábrica Cultural, mas que estão sendo importantes para ampliar o atendimento nas outras regiões. O curso de balé clássico na Zona Noroeste, por exemplo, atende hoje mais de 200 meninas no sambódromo, o dobro do ano passado.

A rádio do seu carro é bem eclética, até instrumentais. Afinal, como é a sua relação com a Orquestra Sinfônica e o Quarteto Martins Fontes, como você avalia o panorama atual dela, desde os ensaios dos músicos até a agenda de apresentações? Aliás, há novos planos para esta área?

09A música é o combustível mais sustentável e potente da alma. Às vezes, basta aumentar o volume do som do carro em dois ou três números que o ânimo se restabelece depois de um dia cansativo de trabalho. Temos em Santos verdadeiros patrimônios culturais. Temos o privilégio raro de manter ativa uma Orquestra Sinfônica, que em 2015 completou 20 anos. Temos um coral municipal respeitadíssimo, em atividade há 25 anos. E temos o Quarteto de Cordas Martins Fontes, que há quase 40 anos apresenta seu repertório com qualidade artística de nível internacional. Talvez esse seja um dos meus principais desafios de gestão. Honrar minha passagem pelo departamento deixando um legado de trabalho que fortaleça as bases dessas nossas instituições que tem vida própria.

Nesse primeiro ano, iniciei uma reformulação completa na equipe de produção dos três corpos estáveis. Isso nos deu fôlego para retomar programas que estavam parados, como o educativo “Dó Ré Mi”, e avançar nos projetos artísticos do Coral e do Quarteto. A partir de agosto, ambos passam a ter concertos mensais regulares. O Coral Municipal, que lançou esse ano um repertório inédito com clássicos do Jazz, se apresentará nas últimas quintas-feiras do mês, no teatro Coliseu, na abertura dos concertos da Orquestra. Já o Quarteto de Cordas, terá seus concertos oficiais nas segundas terças-feiras de cada mês tendo como casa o teatro Guarany.

01O primeiro será no próximo dia 11, às 18h30, conforme anunciado pela Revista Relevo. O conjunto, que é formado por músicos instrumentistas da própria Orquestra, também iniciará um novo programa educativo, que consistirá em apresentações didáticas em núcleos do Escola Total, da Secretaria da Educação. Outra ação importante que merece destaque é o aumento de público nos concertos da Orquestra Sinfônica.

A média desse ano é superior a 500 pessoas por concerto, e foi alcançada graças a uma programação qualificada planejada pelo maestro Petri e algumas parcerias estabelecidas por meio do projeto Plateia Inclusiva, criado em fevereiro, que tem objetivo de convidar o público de instituições sociais e serviços municipais de assistência social a assistir às apresentações. Ainda nesse ano, devemos retomar os concertos nas comunidades e nos bairros da cidade.

A dança também é um destaque da Cidade, como a Escola de Bailado de Santos, o Laboratório de Movimento e Pesquisa Corporal e o curso de dança esportiva em cadeira de rodas, sempre levando o nome de Santos em turnês.

No ano passado, o município perdeu a tradicional bienal do segmento feita pelo Sesc. Como equacionar presença das companhias locais com o vazio deste evento, até por ser uma das vontades do atual secretário em incentivar novos festivais? Há possibilidade da Secult assumir algum grande evento do gênero?

01Santos sempre se destaca na área da dança. Além dessas escolas que você citou, temos ainda a Escola Livre de Dança, que brilha nos festivais pelo alto nível nas modalidades de sapateado americano e irlandês. Não podemos esquecer também do projeto Dança de Rua do Brasil, idealizado pelo mestre Marcelo Cirino, que revelou dezenas de coreógrafos numa nova linguagem, ousada e contemporânea. Temos de ter orgulho de tudo isso e trabalhar cada vez mais para que essa área seja ainda mais valorizada.

A mudança da Bienal de Dança do SESC para outra região foi uma grande perda, sem dúvida, mas não ofusca de maneira nenhuma a qualidade do que continua sendo produzido aqui. Não penso ser uma função prioritária do Estado a produção de festivais para todas as áreas, mas defendo que todas as iniciativas desse modelo tenham o apoio irrestrito do poder público, pois reúnem a força coletiva dos segmentos artísticos. A cidade possui a tradição do carnaval, que nada mais é que um festival popular de culto ao samba e às tradições afro-brasileiras.

Essa tendência de investimento para essa área foi definida ao longo das últimas décadas e por mais que o evento não seja uma unanimidade – e nada é – reflete um desejo e uma simpatia da cidade. Paraty escolheu a Flip, Paulínia escolheu o Festival de Cinema, Santos escolheu o Carnaval. Infelizmente, quando se trabalha com um orçamento, não se pode escolher tudo. Nenhuma cidade média tem esse privilégio de sediar muitos festivais. E nós aqui ainda temos o Mirada, o Festa, o Curta Santos, o Fescete, o Festes, a Tarrafa Literária, o Santos Jazz Festival e o Sansex. Estamos muito bem servidos.

A Cidade também tem a Escola de Artes Cênicas (EAC) Wilson Geraldo, que já é referência e capacita centenas de jovens e adultos nas carreiras de ator. Como você avalia este programa e que alternativas vê para expandir o mercado regional deste segmento para que os alunos quando formados continuem a atuar na Baixada Santista?

05A EAC iniciou esse ano uma nova fase, após perdemos o diretor artístico, Roberto Peres, muito respeitado e que certamente deixou um terreno semeado para darmos continuidade ao trabalho de formação de atores e atrizes. A atriz e professora Renata Zhaneta está assumindo a direção artística da escola e trabalha desde março nessa transição de filosofia. A nova coordenadora é extremamente experiente e foi convidada pela sua competência técnica e para atender um anseio do próprio corpo docente. Juntos, assumimos o compromisso de aproximar a escola da cidade e de atender reivindicações antigas dos alunos e da comunidade artística. Em breve, anunciaremos novidades. O trabalho tem sido silencioso, mas muito produtivo.

Por fim, as seis bibliotecas municipais também estão na sua alçada, onde recebem palestras, debates, saraus, lançamentos e até sessões de cinema. Que relatos você já escutou que marcam estes e outros projetos para aumentar o hábito de leitura entre os santistas?

08Neste ano, concluímos a reforma de dois equipamentos: a Biblioteca Mario Faria e a Gibiteca Marcel Rodrigues Paes e trabalhamos para levar melhorias às outras unidades. No entanto, o maior destaque foi o fortalecimento do programa Leia Santos. As ações de doação de livros, até então restritas aos eventos itinerantes nos bairros, foram ampliadas para 20 novos pontos fixos de distribuição. São displays instalados em 10 pontos de ônibus e outras 10 policlínicas.

A equipe ganhou o reforço de uma kombi para garantir a reposição semanal de livros e para buscar doações na casa dos munícipes. Desde o mês de abril, quando foi lançada a nova campanha, foram recebidos pela secretaria mais de 10 mil livros, um recorde para um período tão pequeno. Temos muitas outras metas a longo prazo, como a integração digital do acervo das unidades, a digitalização do acervo da hemeroteca e a busca de um novo espaço para a biblioteca central Alberto Souza.

Como você pode ver, os desafios são muitos, mas o importante é ter foco e continuar a desenvolver o trabalho. É uma honra poder me dedicar para dar continuidade a um maravilhoso processo público de transformação sociocultural e suceder figuras importantes como Beatriz Rota Rossi, Hedda Gratti e tantos outros que passaram pelo Deforpec. É só o começo e espero que no futuro eu possa entregar o bastão para meu sucessor, feliz por ter contribuído com a construção e o fortalecimento de uma política pública tão importante que é a formação cultural.

*Lincoln Spada

Opinião: O amparo artístico em ‘O Sagrado e o Contemporâneo’

O desamparo num mundo devorador de tempos e espaços limita-se à pior maldição do homem urbano. Como num grande fast-food, correm atrás de lendas familiares, livros religiosos, incensos e amuletos debaixo do travesseiro. Nunca, nunca trazem amores de volta. Tudo para se ampararem nos invisíveis que nos entornam – ou não. Esta busca incessante do extraordinário é a discussão incompleta de ‘O Sagrado e o Contemporâneo’, do Garage – Coletivo de Arte.

03A exposição batizada em 2013 em Santos atualmente é cultuada no Museu Prudente de Morais, até 21 de junho, em Piracicaba. Mostra eclética, tão herdeira dos encontros distraídos na literalmente garagem de José Maria da Costa Villar, quanto das inspirações de ‘O Poder do Mito’, livro-entrevista de Joseph Campbell.

O título aborda desde as etapas de uma saga de herói, as semelhanças das religiões e as diferenças entre um deus e um demônio. “Deuses reprimidos se transformam em demônios, e geralmente são esses demônios que encontramos primeiro quando voltamos a olhar para dentro”, recita o autor.

No altar de divindades em diferentes culturas, ele é categórico ao dizer que cada nome remete no fundo não só uma ética coletiva, uma justificativa idealizada para fenômenos naturais, mas o entendimento do próprio ser humano. Buscar o que há de sagrado no entorno é alcançar a nossa própria essência.

02Por isso, a intensidade nesta mostra que atravessa artes visuais, plásticas, dança e literatura. Nas tintas de Villar, nas intervenções de Olegário Monteiro, nos versos e prosas agridoces de Marcelo Ariel, nos passos dançantes entre olhares sisudos de Adriana Barbieri e Tatiana Justel. Sem falar das cores vibrantes de Claudinei Bettioll e dos quadros sacros do saudoso José Manoel de Souza Neto.

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Cada um transcendendo em obra expressada e em expressão de si mesmos, já que a liga do coletivo é justamente o ser performático. Captando em suas individualidades os valores que influenciam o seus respectivos rituais ao fazerem arte. Um tema tão abrangente e profundo que, como bênção ou utopia, pode fazer com que o visitante de ontem se surpreenda com as composições de amanhã. Então espero voltar a me surpreender com esta procissão abstrata do Garage noutras vezes.

*Lincoln Spada